O texto que se segue foi escrito em 2007 por conta da morte de um amigo em situação trágica de um atropelamento criminoso. Apesar de ter escrito no período, não ousei publicar apesar de ofertas a mim feitas, poi acreditava ser algo mais intimo à mim e à morte que à minha relação tão superficial com este amigo.
Ontem a noite morrera um amigo meu. Não que realmente meu amigo o fosse, mas o conheci a vida toda. Perdão, engano-me, ele morrera jovem e destes poucos anos, que sei eu mais de sua vida que da do jornaleiro que me saúda todas as manhãs? Estudávamos juntos, morávamos perto e nenhum sentimento fraterno nos aproximara de fato, mas a verdade mórbida me chegou aos ouvidos como uma sentença irrevogável para a minha distância: te afastastes de vez.
A morte me trouxe, ao fim, ao fim, a saudade daquele que passava despercebido há poucos instantes atrás. Por isso o chamo amigo.
A triste constatação, o finito, seguida de um afirmar feliz, o amigo, desvendaram o que se passa em mim. Eu percebi, todos os homens são ligados por uma tenebrosa fraternidade. Não existe distância, não há afastamento real, todos os peitos se apertam ao se encontrarem com o último intermediário entre o “eu” e o “outro”, a morte, a morte. E todos conhecem e se identificam com aquele quem morre, todos lamentam, por si ou pelo outro ou pelos dois. Esta é a aliança dos homens com seu fim, uma fraternidade, paradoxalmente, eterna.
Não me consolo com o fim. E se sinto falta de meu amigo agora, não o sentindo a tão pouco atrás, é porque um “vir-a-ser”, um amigo que teria, é mais concreto e feliz que qualquer “feito” macabro. De fato, a cada fim, a cada morte, a cada homem, a cada jarro de planta, a cada animal, a cada um que se vai ou se quebra sem que o tivéssemos tido, que o quiséssemos ter, nos faz querer tê-los ou, quando pouco, desejar querer: o vir-a-ser está no domínio da vida e sem aquele, esta não se faria.
As religiões, não entendem nada da morte. Que é o paraíso se não um vir-a-ser? Vir-a-ser, aliás, tão vivo que não poderíamos associar seu caminho àquela quem preside nossa funesta irmandade, à morte. Não! Todos os religiosos choram pelo fim de seus irmãos, posto que é um fim, e seus mitos saltam-no para uma outra fase, um outro vir-a-ser, mas não os trazem de volta. Um fim não tem depois. Aliás, o que a carta da morte, no tarô, o que esta carta e todas as outras, o que todos os arquétipos de Jung, o que todos os livros sagrados, o que todos eles sabem da morte do homem? Qual destes conheceu nossos anseios, infundados ou não, i-na-ca-ba-dos? Qual deles terminará o que estaremos a fazer quando ela nos levar?
Eis um anseio a mais que não sei se ela me deixará superar, eu não tenho respostas. Não me consolo com o fim porque de nada elas, minhas respostas, me valerão, mas ainda assim eu pergunto. Não me consolo com o fim porque não tenho mais a chance de perguntar a meu amigo, porque não tenho mais a chance de fazê-lo amigo.
Não me consolo com o fim posto que é fim e minha humanidade é eterna.
Meu amigo, quantas das tuas perguntas tereis respondido em tão pouco tempo? Quantas dúvidas tu deixastes para os vivos?
Quem estava comigo aqui: canto para a minha morte – Raul Seixas
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